segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Fotografias

Por Vanessa Coutinho

   Ainda não são oito da noite, e a chuva que cai é absurda. Absurda porque intensa, fria e completamente inesperada. Preocupada com a possibilidade de uma queda de luz, remexi nas gavetas em busca de velas, e, antes de encontrá-las, encontrei o que restou das fotos. Num cantinho, as velas. E, por baixo das velas, os palitos de fósforo. Há um mês, organizei meu pequeno ritual, embora não tenha conseguido mantê-lo até o fim. Rasguei os retratos, e os amontoei dentro de uma forma forrada com papel de alumínio. Acendi o primeiro palito de fósforo, e fui queimando os pedaços, com uma sensação no corpo que não saberia dizer se era prazer ou dor. Não chorei. Há muito tempo não choro. Na verdade, não sou capaz de lembrar de ter chorado algum dia. Enquanto queimava o rosto de minha mãe, a lembrança das surras em que dizia que só pararia se eu chorasse, era absolutamente presente. Mas eu não chorava. Ela batia até cansar, até sua mão arder, e ela própria chorar, frustrada, porque eu não derramava uma única lágrima. Não sei que força insana se apoderava da minha cabeça, eu então com nove ou dez anos, e que fazia com que toda a intensidade da dor fosse meu escudo. Eu forjava a armadura interna que me acompanharia para sempre. E ela, exausta, por um lado vencida, por outro aliviada, depois de usar meu corpo como continente de sua ira, ia se trancar no quarto, gritando que eu, com minha maldade, um dia a mataria de desgosto.
   Minha maldade fazia coisas como cortar os cachinhos pretos do cabelo de Manoela. E isso nem doía. Manoela, nesta época, talvez não tivesse ainda cinco anos. Era minha irmã, filha de minha mãe e daquele homem que faço questão de não pronunciar o nome, porque ele nunca fez questão de saber o meu. Chamava-me de coisinha, menina ou diabo, de acordo com seu humor e o resultado das apostas. Dinheiro ele tinha, porque Manoela estava estava sempre tão bonita, com vestidos novos, brinquedos novos... Vestidos e brinquedos que eu, na minha maldade, rasgava e quebrava. E outra surra vinha. Manoela, com seus olhos redondos, ficava meio escondida atrás das portas, a boca aberta, olhando o bizarro espetáculo. E, muitas vezes, enquanto minha mãe se trancava no quarto para se lamentar e chamar por ela ("Manu, minha princesa, onde você está?"), com um mel na voz que eu nunca conheci, ela chegava perto de mim, aquele trapo cheio de manchas roxas que eu era, e estendia a mão delicada para acariciar meus cabelos arrebentados pelos puxões. Ajeitava-os como podia e, só depois, ia atender aos chamados que ecoavam pela casa. Eu, imóvel, olhava aquela criatura infinitamente bela, e, muitas vezes, desejei que morresse. Não por ela, mas para que minha mãe sofresse. O homem, acho que não sentiria falta dela. Se não a chamava de diabo, como a mim, por vezes a classificava de chorona, e reclamava de que para sustentar aquela coisinha miúda, a mulher lhe exigisse tamanhos valores. Hoje, sei que o simples fato de participar, como espectadora, daquelas cenas quase diárias, deixou na menina tantas marcas roxas quanto em mim. E, na minha maldade, me sinto um pouco vingada.
   Quando, enfim, eu podia erguer o corpo do chão, ia até o quarto e olhava a foto de papai. Seus cabelos louros, seus olhos azuis. Tão alto e forte que seria capaz de arrastar um carro. Desconfiei de Deus quando me dei conta de que papai se fora antes de que minha mãe tivesse a chance de avisar-lhe da gravidez. Mas a figura da foto era meu pai, e ele sorria de um modo que amenizava as dores. Então, durante a infância, e até hoje, enquanto as outras pessoas rezam, eu converso com a foto, e Deus tem a cara do meu pai. Ou melhor, meu pai tem a cara de Deus, porque meu pai é real, e eu sei também, com toda certeza do mundo, que se ele soubesse de mim, me amaria e protegeria. E essa certeza foi toda a fé de que fui capaz...
   Ouço o telefone tocar. Talvez seja o Edu. Hoje, ele vai para Tóquio. Para sempre. Para nunca mais. Como eu gostaria de que ele, de uma vez por todas, me tirasse deste lugar cheio de fantasmas. Chego perto do aparelho, o coração aos pulos, numa tentativa de alegria. Não atendo. Talvez seja ele. Talvez não. Atender é uma aposta alta demais.
   Agora, o aparelho emudeceu. Pensando bem, tenho certeza de que era ele. Toda certeza do mundo. E esta certeza é toda fé de que sou capaz.

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