sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

Fernando, Fernando

Por Vanessa Coutinho

   - Nando, você já viu alguém morrer?
   - Já.
   - E como é?
   - É feio.
   Calou-se Lorena por alguns minutos, suficientes para Nando entrar naquele estado entre sono e vigília, quando já os sentidos parecem nos abandonar e somos capazes de perder a noção do que é real e do que é imaginário, embora ainda não estejamos dormindo. E Nando viu Fernando. Não um espectro, uma sombra, mas Fernando inteiro e nítido, tal como era pouco antes de morrer. E viu que ele movia os lábios, aflito para dizer alguma coisa, mas não conseguia pronunciar nenhuma palavra. Nando arregalou os olhos. Ao seu lado, apenas Lorena, hoje tão parecida com Fernando dez anos atrás. Os mesmos olhos amendoados, os mesmos cabelos longos e lisos. A mesma ingênua perplexidade diante da vida.
   Lorena tinha o olhar fixo. Deitada ao lado de Nando, parecia observar sua própria figura no espelho do teto.
   - Nando, você viu meu irmão morrer?
   Ele não queria tocar nesse assunto. Todos os assuntos que ela quisesse, qualquer um, menos esse. Mas, nos últimos tempos, esse assunto parecia ter virado uma obsessão.
   - Por quê isso agora, dez anos depois?
   Ela tinha seu motivo para tocar no assunto maldito. No assunto proibido, que ficou sempre calado, como se, ao ficar calado, não fosse o grito mais alto de toda a sua vida. Ultimamente, vinha sendo assombrada pela lembrança do irmão. E pela lembrança do dia que tudo fora alterado, por alguma coisa terrivelmente maior do que ela, e até maior do que o pai e a mãe, que, na época, julgava os seres mais fortes do mundo. Tinha oito anos. Fernando, dezoito. A mesma idade do amigo inseparável. Difícil dizer qual dos dois era o mais bonito. Fernando e Fernando. Tão unidos que usavam, cada um, duas letras F penduradas em cordões de couro, como símbolo de amizade eterna. Hoje as quatro letras pendiam juntas, em uma grossa corrente dourada, do pescoço de Nando. Ao vê-las, Lorena não podia deixar de se lembrar das alianças de viúva no dedo da avó.
   Uma raiva contida, fruto de vários afetos misturados, começou a se manifestar em sua voz:
   - Você viciou o Fernando, não foi? Mas você mesmo nunca se viciou. Em nada. Nada nunca foi fundamental para você, você nunca se entregou a coisa alguma!
   Nando não respondeu. Mantinha abertos os olhos, porque se os fechasse, a imagem de Fernando, a voz de Fernando, os planos de Fernando, tudo lhe invadiria a mente, e não queria chorar. Não aqui, diante de Lorena. Lorena, os mesmos cabelos, os mesmos olhos...
   Lorena lembrava da época em que o pai chegava do trabalho todos os dias com um brinquedo, um chocolate ou uma revista em quadrinhos. O seu coração disparava de alegria quando ouvia a chave girar na porta. Parava o que estivesse fazendo para correr e se atirar em seus braços. E ele, depois de beijá-la por vários minutos, ia até a cozinha, onde a mãe preparava o jantar. Lá, enquanto os adultos conversavam, Lorena brincava ou lia. Mais tarde, chegava Fernando. Sempre muito quieto, muito silencioso. Em geral, trazia Nando, com seus olhos de um verde que, de tão belo, chegava a ser incômodo. Davam boa noite e iam para o quarto, ouvir música. Em certa ocasião, ela ganhou do pai um chocolate diferente, mais gostoso do que os outros. Quis dividi-lo com o irmão e, na ânsia de fazê-lo, esqueceu-se de bater na porta. O que viu, não recorda, acha até que não chegou a ver nada, foi tudo muito rápido. Mas Fernando brigou com ela, gritou, deu-lhe um tapa. Ficou tão magoada que nem conseguiu chorar. Engoliu o pranto e correu para seu próprio quarto, onde ficou absolutamente imóvel. Queria que o rapaz viesse até ela, para que pudesse explicar que apenas tentara fazer-lhe uma surpresa, dar-lhe um pedaço do chocolate. Mas ele não veio. Quem veio foi  Nando. E conversou com ela, contou-lhe coisas engraçadas. Depois, explicou que o amigo estava nervoso, não havia feito por mal. Nenhum dos dois sabia que a explosão de Fernando marcava o início do caos. E que, no caos, se solidificaria a aliança iniciada exatamente ali, naquele momento. Todo o resto ruiria. E a sua constatação mais perversa era a de que o irmão fora a perda menor que tivera. Com ele, havia sido sepultada a promessa de uma vida feliz. Pois feliz era a vida até então, talvez porque pintada com a cor de seus oito anos, que não exigiam muito para ser plenos. Mas sempre haveria a marca de um dia em que tudo mudou. E essa marca, agora, clamava por um sentido.
   No dia em que tudo mudou, acordou com o choro da mãe. Era madrugada, as janelas não tinham sido abertas. E nunca mais seriam. O pai, sentado no sofá, de pijama ainda, olhava para o nada. Há dez anos, como hoje. Ainda hoje, o pai olha para o nada. Depois daquele dia, se recolhera a seu próprio interior, e não fora mais trabalhar. Nunca mais trouxera doces, brinquedos ou revistas. E nunca mais a beijara.
   - Você estava com meu irmão quando ele morreu?
   - Chega!
   Ele gritava. Pela primeira vez, gritava com ela. Mas ela não recuou. Certas coisas, quando começam, não podem ser interrompidas.
   - Estava sim! Esse é o segredo que você guardou esses anos todos!
   Nando calado, os olhos fechados para não ver Lorena. De olhos fechados, só via Fernando. O que ela sabe sobre segredos guardados por muitos anos?
   Lorena falava, falava, falava. Compulsiva e estridentemente. Nando não suportava mais. Levantou a mão enorme. Queria calá-la, só isso. Não, não era só isso. Queria machucá-la, provocar nela uma dor, como a que ela estava lhe provocando agora. Lorena, os olhos fixos nos seus, não moveu o rosto um só milímetro. Aguardou o tapa, mas não havia provocação nem medo. Havia a inconsequência típica daqueles que não têm noção dos riscos. Até nisso, igual a Fernando.
   Mas ele não pode. Sentiu, apavorado que, se começasse, seria capaz de matá-la. Como, se a amava, mais do que tudo na vida? Seus olhos, seus cabelos, sua inconsequência? Angustiado, procurou algo em volta para descarregar sua fúria. Nada havia, além das roupas espalhadas pelo chão. Sem pensar, arrancou do pescoço o cordão e atirou-o contra a parede, revestida de espelhos, que se quebraram com a violência do impacto.
   Lorena havia se calado. No peito do homem à sua frente, parecia maior a cicatriz em forma de cruz decorrente da ferida feita à navalha, no dia em que Fernando morreu. Ele mesmo se marcara. Por quantas vezes dormira com ele, vendo sem ver aquela marca horrenda? Por quê agora tudo começa a fazer sentido? O pai, embora vivo, não vivia. A mãe, nem de longe lembrava a bela mulher que um dia fora. Parecia ter se consumido em culpa. O que teria acobertado, na época, para cultivar tamanha culpa? Lorena começou a chorar, por não conseguir impedir a si mesma de conhecer coisas que preferia desconhecer. Descobriu que não queria certezas. Queria dúvidas, com as dúvidas podia conviver. Observou Nando, nu, ajoelhado sobre os cacos de vidro, ferindo pernas e mãos, a procurar as quatro letras F, que se libertaram e se separaram no momento em que o cordão esfacelou o vidro. Viviam atados pela força de uma ausência, que se impunha há dez anos, tempo demais. Se tivesse ânimo teria pedido a Nando que deixasse as letras livres, não as amarrasse novamente. Só ela sabia que esperava um filho. Enquanto recolhia suas roupas, pensou no quanto a vida pode ser cruel.

3 comentários:

  1. A morte é algo inevitável, mas sempre nos assusta. A culpa sempre existe, a racionalização vem com o tempo. Abraço Cynthia

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  2. Cynthia, fiquei feliz com sua visita. Aguardo muitas mais...

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  3. me comoveu, existem outras mortes além da morte física e a dor, se não igual, é bem parecida...

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