quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

O Senhor do Tempo

Por Vanessa Coutinho

   Olhou o relógio pendurado na parede da sala. Cinco horas. Pensou em passar um café. Uma recordação fugidia lhe trouxe a imagem da mesa posta. Rápida, se foi, como esta mosca que escapou pelo corredor. "Por quê há tantas moscas aqui? Desagradável conviver com elas". Tentou resgatar o pensamento anterior. Fechou os olhos e viu apenas inúmeros pontos pretos esvoaçantes. "Malditas moscas! Estão até dentro da cabeça!". Paciência... O pensamento estava perdido. Isso vinha acontecendo com frequência. Sua mente produzia os pensamentos e eles se lançavam fora, rompendo a linha de ligação. Lembrou dos botões do pijama, que caíam e se perdiam, quando a linha se rompia. E ele, a perder pensamentos como quem perde botões. Riu da própria comparação, e espantou-se: que som estranho havia adquirrido seu riso! Meio rouco, feio até. Não conseguiu conter uma discreta olhada para os lados, como a certificar-se de que a assustadora risada não viera de alguém que pulara a janela e invadira sua sala, achando graça da comparação dos botões. Agora, já não tinha certeza de haver apenas pensado; talvez tivesse falado em voz alta. Mas por que teria falado, se mais ninguém estava em casa? Há uma eternidade mais ninguém estava em casa...
   Enquanto conjecturava a respeito do som do riso, foi andando pelo corredor, seguindo o caminho das moscas. A estante estava empoeirada. Como podia viver com tanto pó? Talvez por isso sentisse, às vezes, certa falta de ar. O relógio dourado marcava meio-dia. Já almoçara? Não, com certeza não almoçara. Não almoçava mais, ia somente roendo pedaços de biscoitos e frutas, que encontrava sobre a mesa da cozinha. Aliás, frutas sempre frescas, alguém se ocupava em deixá-las. Laura? Um súbito desconforto lhe tomou, na forma de um esvaziamento, como se seu espírito escapasse pelos ouvidos, e o corpo, oco, estivesse prestes a tombar. Com as mãos na parede, trêmulo, assegurou-se de que o espírito não partira, mas já não sabia o que havia provocado tamanho mal-estar. O pensamento havia se lançado fora. Cada vez mais rápida, essa fuga...
   Calculou a urgência de chegar ao quarto. Nunca percebera o quanto o corredor era comprido. Com alívio, alcançou a cama. Deitou-se, ao lado da gatinha, que nem se moveu. Era uma benção, a presença dessa gatinha. Por isso, não se incomodava com o fato de que dormisse sobre a cama, ou mesmo arranhasse os sofás, de vez em quando. Além do mais, era independente, ia para a rua buscar a própria comida quando sentia fome. Se fosse um cachorro, dependeria dele para alimentar-se. Sabia que havia tido um cachorro quando jovem. O que teria acontecido com ele? Que tolice (e riu novamente, mas o riso ficou abafado por um soluço). Se tivera um cão na juventude, ele agora estava...morto. Morto. Como será estar morto? E, na sequência desse questionamento, sentiu-se de novo tonto pela galeria de rostos que invadiu sua mente. De onde sairam tantos rostos e vozes e nomes?
   O relógio digital na cabeceira mostrava: quinze horas e vinte e três minutos. Não havia um comprimido às três da tarde? Pensou no sobrinho médico. Sabia que o julgava caduco, dizia que cada relógio da casa marcava uma hora diferente. Sugeriu acertá-los, para que todos mostrassem a hora correta. A hora correta? Qual é a hora correta? O sobrinho é um tolo, escravizado pelo tempo, que vai lhe tomando coisas, comendo pelas beiradas, porque quer tomar-lhe a própria alma. O tempo é como uma bruxa velha, a exigir sacrifícios que aplaquem sua fúria. O tempo pensa que é Deus. "Aqui o tempo não manda nada. Quem manda no tempo sou eu". O sobrinho costumava olhá-lo com cara de poucos amigos e pouca paciência. Passava a mão naquela cabeleira totalmente branca, surpreendente em um rapaz tão jovem. Quantos anos poderia ter? Vinte e três? Vinte e cinco no máximo. Percebeu que a cabeça doía, os braços pesavam. Todos achavam-no meio doido desde que Laura...
   Laura... Onde estava Laura? Por quê nunca mais sentaram-se juntos para o chá? Uma outra lembrança tentava, à toda força, rasgar as resistências e vir à tona. Sabia que se lançaria fora como as outras, mas não queria os rastro das sensações que lhe provocaria no corpo...
   A gatinha se moveu. Abençoada gatinha. Quis falar com ela, enquanto afagava seu pelo desgrenhado e sujo. Não teve certeza de ter conseguido pronunciar as palavras:
   - Aqui não é o tempo que manda. Quem manda no tempo sou eu.
   Com dificuldade, elevou o braço até poder enxergar o punho. Seis horas. Fez o sinal da cruz, em silêncio. Tirou o relógio de pulso, delicadamente. Ouviu seu som cadenciado. Apreciou o marcador de algarismos romanos. E fê-lo parar.

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