sábado, 31 de dezembro de 2011

Vinte Minutos

Por Vanessa Coutinho

   Interessante... O mar parecia furioso. Eu sabia que as emoções e afetos se digladiavam dentro de mim. Eu podia sentir as arenas, na altura do pescoço, do peito e em meu ventre. Era o aperto na garganta. O soco no estômago. O frio de uma lâmina na barriga. Mas essas coisas se projetavam como raios pelos meus olhos, e eu via o mar furioso. Imaginava com o quê se aborrecera. Conferia vida ao mar, como se fosse um bicho, um ser com instintos e pele, que pudesse arder. E me identifiquei com aquela enorme besta em fúria que, logicamente, só eu enxergava.
   Fiquei ali imóvel por um tempo que não sou capaz de definir. Talvez num leve transe de alguns instantes. Mas, se alguém me dissesse que ali permaneci por vinte anos, como uma estátua de pedra, catatônica, com a alma aprisionada apenas nos olhos, tal e qual uma criança pendurada na janela, eu não teria duvidado.
   - Desculpe, moça.
   Fui trazida de volta da imensidão do mar por um violento esbarrão. Quase caí, cheguei a perder o equilíbrio. Tolice... Como perder o que não se tem? Lembrei de uma comparação tola feita por mim há muitos anos...Queria provocar um amigo, sem tostão, que vendera sua companhia a uma mulher que não amava. Nesta mesma praia, comparei dois cães: um magro vira-lata e um poodle branco encoleirado. Eu disse que podia ler os pensamentos do poodle, e que ele invejava a liberdade do vira-lata. Se você não tem nada, o mundo nada pode lhe arrancar, e tudo o que vier será bem vindo...
   O menino que esbarrara em mim, e que fizera com que minha alma, que ocupava apenas os olhos, se deramasse de volta por todo o corpo, já ia longe. Devia ter uns quinze ou dezesseis anos, mas algo nele, que não identifiquei de pronto, me tocou fundo. Senti um gosto estranho na boca, um gosto de sal. Aos poucos o torpor se foi totalmente e, como quem desperta de um longo sono, soube que chorava, e o gosto estranho era das lágrimas que me alcançavam os lábios. Achei que, mais uma vez, comungava com o mar, porque o gosto das lágrimas, embora mais suave, fazia lembrar o gosto do oceano.
   Escorreguei pela areia como uma geleia disforme. O cheiro dos cabelos pretos do rapaz ainda estava vivo em minha memória. Nunca o havia visto, mas ele me era tão íntimo... Cheguei ao ponto onde podia sentir as gotas em minhas pernas. O que aquele rapaz me trouxe de tão conhecido? Cabelos negros? Não podia ser só isso. Ele me despertara. Arrancara-me da letargia. Pedira desculpas e se fora. E agora, provavelmente, nunca mais o veria. Era como se estivesse morto para mim. Ou eu, morta para ele. A morte era quase isso. Era quase nada. Era quase próxima. A água gelada me magoava os pés e tornozelos. Você me arrancou da letargia. Fez-me crer que era possível viver acordada. E agora? Não vejo mais seus cabelos negros. Lembrei novamente da história dos cachorros. De quem nada possui, nada a vida pode tomar. O aperto na garganta me fez sufocar. Instintivamente, levei a mão ao peito, e algo estava lá. O alfinete com uma rosa, que você me dera. Arranquei. Senti uma gota de sangue escorrer pelo peito. Joguei o alfinete no mar. De quem nada possui, nada se pode tomar. O mar agora estava de luto. Virei de costas para ele, de frente para o calçadão. Do rapaz, nem sinal. Morto parta mim. Eu, morta para ele. Olhei o relógio. Não havia se passado tanto tempo desde que saltei do taxi, disposta a ir até onde o mundo termina. Vinte minutos. Não quis olhar o mar de novo. Ele estava de luto. E eu estava viva.

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